Notas sobre a Arqueologia do século XIX e sobre o Modo de Produção Asiático - Por uma suprassunção necessária

Em 1860 a categoria conhecida como Modo de Produção Asiático encarregou-se de explicar as formações societárias pré-capitalistas que não possuíssem as matrizes greco-romanas. No século vindouro, os Marxistas tentariam encaixá-lo de forma bruta, grosseira, sem lapidação -e refinamento- (tal como Marx elaborara) para o caso americano e pré-colonial.
Era normal e completamente natural que Marx tivesse feito isso no século XIX, colocando os Peruanos, Mexicanos, Hindus, Babilônicos, Núbios, Egípcios, alguns Micênicos, Khmers, Chineses e etc. No mesmo batel e analisando de forma homogênea seus complexos societários e palacianos, as formas de tributação, formas de governo (quase todas teocráticas), formas de propriedade da terra, a conformação da acumulação originária e das classes sociais nestas civilizações templárias e etc.
A
antropologia destes
tempos pintaria os asiáticos como uma aglomeração societária pagã e exótica, fixa no
devir (tal como entes inamovíveis), por serem subproduto
da subsunção real das comunidades aldeãs e
agrícolas
aos complexos templários, tributários e às
autocracias despóticas,
enquanto os outros
inúmeros
povos e etnias -os quais não se
conformaram e organizaram em
cidades-estados-,
eram vistos como frátrias equestres
e
bárbaras oriundas das estepes, residentes
em uma cabana de peles de nome yurt.
Estes estavam reduzidos a povos
nômades, divididos
entre o pastoreio de nomadismo, a razia, o
banditismo, enquanto outros, menos coléricos, preferiam
a
vida aldeã, sedentária e adaptada à agricultura simples de subsistência, i.e, e à vida na
comuna agrícola, pagando certa quantia de excedente produção como tributo às civilizações palacianas, já assentadas por milênios, sobre a égide de impérios palacianos e dinásticos.
Criou-se então um consenso, de que estas formas civilizacionais afro-asiáticas estariam perplexas diante do avanço tecnológico -e das forças produtivas- e o consequente choque com os países ocidentais, a superioridade bélica emanada dos civilizados europeus fariam os modos de produção bárbaros e os asiáticos (em voga em nações palacianas) desmoronarem.
A Arqueologia da segunda metade do século XIX, era por sua vez, obra de amadores, de estudiosos sem qualificação e de salteadores de túmulos, estavam eles alinhados quase sempre ao avanço do imperialismo, a auri sacra fames [1] e à ganância: estes "estudiosos" ingressavam nas fileiras de grandes expedições (como as montadas por Napoleão), compondo parte do corpo expedicionário destinado à conquistas ou a pacificação das províncias da Ásia e África.
A fim de aprenderem mais sobre a cultura exótica e povoados idílicos -e em meio aos saques, pois alguns não passaram de bandidos-, destruíram uma vez mais as ruínas com as quais se deparavam, muitos arqueólogos amadores acabaram por arruinar artefatos, destroçar múmias, pulverizar cultura material e desmembrar complexos cerimoniais inteiros, tal como o "decapitamento" das pirâmides Núbias -engendrado por Ferlini, em 1834- onde utilizando-se de dinamites as explodiu, em um ínterim onde acreditava-se cegamente que seus topos "continham uma quantidade significativa de ouro núbio".
Poderíamos citar o esquartejando de múmias e o "transplante de monumento em pedaços", os quais eram exportados para os países de origem de seus depredadores -os quais a essa altura erguiam grandes museus. Caso emblemático é o que fora feito com múmia de Tutancâmon -por Howard Carter, esta múmia foi completamente despedaçada e desmembrada, pois os britânicos almejavam colocar suas garras em suas relíquias de ouro, como a máscara de ouro e os 150 amuletos internos, os quais estavam ocultos sob as bandagens e os remanescentes da carcaça do faraó menino, mumificado.
Não parariam por aí: fizeram
o
mesmo
com os complexos
templários e
palacianos de
Luxor, Karnak,
Abul-Simbel
e Etc
-os
quais tiveram dezenas
de partes serradas
e
arrancadas brutalmente com cinzeis de corte e
trabalho escravo, desfalcando os complexos
palacianos e templários norte-africanos,
amputando partes de esfinges, de estátuas
e extraindo obeliscos
inteiros,
os quais foram "misteriosamente" ressurgir, tempos mais tarde, do
Louvre, aos museus britânicos, belgas e holandeses, sobretudo,
durante
o
início do século XX, em época de imperialismo e da arqui-documentada Partilha Afro-asiática.
Mesmo os avanços tímidos da arqueologia do século XIX, fora algo dado à reboque de métodos tremendamente grosseiros, positivistas e eurocêntricos: a etno-história não existia e nem a análise linguística, que era um trabalho incipiente feita por curiosos, auto-didatas e eruditos dedicados -tal como o trabalho grandioso, do egiptólogo de campo de Napoleão chamado de Champollion, ingressado nas campanhas francesas -durante a anexação do Egito (1798 -1801)-, onde empenhou-se por decifrar partes da escrita pictográfica egípcia (os hieróglifos da Pedra de Roseta), tendo por base o Grego do período Ptolomaico.
Os
complexos palacianos mesoameríndos, em América, estavam tomados
pela selva: o complexo cerimonial de Teotihuacán fora confundido "com
um vulcão" inativo, suas plazas eram selva densa; Tula (a cidade
Tolteca) estava tomada por samambaias; e se tratando de Andes, não
sonhava-se com os templos de adobe como o complexo sacrificial da grandiosa Huaca de La Luna,
como a cidade Chimu de Chan-Chan, nem com as riquezas da Tumba do
Senhor de Sipán -a qual encontrava-se oculta nos veios subterrâneos
da terra...Machu Picchu, por sua vez, ainda era um rumor e o que se sabia da
história de outros povos -que não os Romanos e Gregos-, era algo
povoado por sortilégios, como as explicações acerca da construção
das pirâmides do Egito e dos zigurates do Crescente Fértil,
ensaiava-se uma história da Ásia, tendo por base a China -saqueada
inúmeras vezes pelos bárbaros das estepes, como os mongóis, tártaros, espécies de hunos vermelhos e os
manchus-, a qual, agora, tinha a sua "segunda chance" para se civilizar, se modernizando e se adequando à acumulação capitalista e à
circulação otimizada de mercadorias (ocidental), por intermédio
de seus portos (em Cantão) abertos pacificamente a tiros de canhões e entorpecidos de ópio, pelos
civilizados vitorianos. É de Marx a alegação que frisa, que:
"A amputação de narizes, peitos etc.; em uma palavra, as horríveis mutilações que cometem os cipayos [e que escandalizavam a puritana opinião pública pacificamente instalada no solo inglês europeu] são, por suposto, mais repulsivas para os sentimentos europeus que o bombardeio de moradias em Cantão ordenadas por um secretário da Sociedade da Paz de Manchester [o liberal John Bowring que em 1856 ordenara um bárbaro bombardeio em Cantão] ou que queimar vivos a árabes encerrados em uma cova como faz um mariscal francês...ou qualquer outro dos métodos 'filantrópicos' que se empregam nas colônias penais britânicas ." (A Dominação Britânica em Índia)
Sabia-se algo, é verdade, sobre a Índia -que já tinha o chá, as especiarias e o algodão explorados pelo pelo monopólio britânico da Companhia das Índias Orientais já há pelo menos meio século; o Modo de Produção e sócio-reprodução das civilizações da América se assemelhavam à "Forma Asiática" (sobretudo, na cobrança de tributos, nas formas de propriedade da terra, divididas em palaciana, nobiliárquica e coletiva, nas formas de despotismo, nas obras hidráulicas e no vínculo do complexo templário com o urbanístico). Mas a forma americana precisa de ajustes, de um "outro nome", afirmamos neste breve artigo, que a descrição acerca de um Modo de Produção, precisa compreender e adstringir os elementos peculiares de cada localidade, de cada cultura e de cada formação societária.
Tal como o capitalismo segue o itinerário do desenvolvimento desigual e combinado, precedendo de formas peculiares e transitórias em sua fundamentação ontológica: a Via Colonial de conformação do capitalismo não é a Via Prussiana, tal como a Via Russa (descrita por Lênin) não é a Via Americana e esta, por sua vez, não é também a Via Clássica: atinge-se o modo de produção capitalista por formas de sócio-reprodução ontologicamente distintas. O Modo de Produção Asiático -que precedeu o capitalista, em partes da Asia e em América- serviu, -nos Grundrisse de Marx-, para explicar tanto Peru, quanto o México, i.e, tal como a ontogênese da acumulação primitiva e das sociedades de classes no novo mundo, degringolada antes da chegada dos espanhóis; mas tal categoria permeada por imprecisões civilizacionais, organizacionais e culturais, precisa ser lapidada, revista, ajustada e superada (no caso destas formas societárias americana pré-hispânicas), isto significa aventas, que precisa ser suprassumida, sobretudo, no caso destas formações societárias descritas e dos complexos templários americanos, em épocas pré-capitalistas.
É uma lástima ficarmos -enquanto comunistas e continuadores de Marx- tratando Astecas, Taínos, Cahokias, Pueblos, Iroquóis, Mochicas, Incas, Olmecas, Chibchas, Nazcas, Maias e Etc, como se fossem Indianos, Tailandeses ou Chineses, ignorando os elementos específicos destas formações societárias e de seus complexos palacianos, reduzindo tudo à formação macroeconômica, ancorada nos tributos e nas obras hidráulicas. Nas raias do marxismo contemporâneo, isto soa como algo anti-ontológico...Nas da história, como hstoriador afirmo sem medo de errar que é algo completamente insuficiente, grosseiro, incorreto, anti-dialético, anacrônico e a-histórico.
Marx, em seu tempo, não possuía os elementos necessários e nem as ferramentas para refinar e precisar sua análise, incorrendo em algumas imprecisões de tempo e erros de época, fazendo algumas generalizações que não afetavam a qualidade de sua análise macroeconômica e mesmo sob estas circunstâncias, fez ótimo trabalho. Mas como seu discípulo, afirmo que é tarefa de todo comunista, dar precisão histórica, ontológica e arqueológica a aquilo aventado por Marx, corrigindo-o onde necessário e aprimorando suas elucubrações e contribuições, que não devem ser um dogma, mas uma ferramenta crítica e histórica para analisar o desenvolvimento material do homem e das forças produtivas, no devir.
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[1] - "a febre maldita de ouro".
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Bibliografia:
ANDERSON, Perry. Passagens da Antigüidade ao Feudalismo. 5a
edição. São Paulo:
Brasiliense, 1994. Tradução Beatriz Sidou.
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VERNANT, Jean Pierre. As Origens do Pensamento Grego. 3a
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WITTFOGEL, Karl. Despotismo oriental: estudio comparativo del poder totalitario.
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