A Via-Asiática e a Revolução passiva Meiji
Por Felipe Lustosa, Historiador e filósofo
O Japão foi um país
que mantivera-se isolado do restante do mundo ocidental até os
meados do século XIX. Durante o ano de 1853, os Estados Unidos
resolvem forçar a abertura dos portos japoneses. Decidiram-se também os
estadunidenses por enviarem uma esquadra composta por quatorze navios dentre cruzadores e contratorpedeiros (os precursores dos Destroyers na marinha estadunidense). A flotilha fora capitaneada pelo Almirante Matthew C. Perry. O
Imperialismo estadunidense, por intermédio das canhoneiras e do
Tratado
de Kanagauwa [1]
forçou os japoneses a aderirem às suas mercadorias as quais
passariam a figurar nos portos, entrepostos e zonas comerciais do Japão. Perry
ameaçaria bombardear a Capital japonesa caso os Japoneses se negassem
a aderir ao liberalismo-econômico e ao livre-mercado não assinando
o Tratado.
Após assinarem dois tratados que os prejudicavam economicamente em praticamente tudo [o Tratado de Kanagauwa e o Tratado de Harris[2]] - com relação aos preços de mercado dos produtos estrangeiros em comparação com os nacionais, agora colocados no mercado interno Japonês a baixos preços e com superioridade em questão de qualidade - o Japão também se veria, tempos depois dos Estados Unidos invadirem seus Portos com uma esquadra, submetido ao imperialismo de outras potências imperialistas as quais seguiriam os rastros e itinerário dos EUA, também adentrando na Ásia. Elas procurariam tirar proveito da debilidade e condição de fragilidade e de servilismo japonês, forçando-os a fazerem concessões à França, à Inglaterra e até mesmo à débil e atrasada Rússia Czarista.
Incapaz de conseguir reagir, o Japão em um segundo momento se decide por adotar também o receituário capitalista e por implementar seu complexo armamentista abrindo mão do Modo de Produção pretérito o qual estava corporificado no Feudalismo - por intermédio de uma feroz Guerra Civil travada entre os prosélitos de Tokugawa e os do novo governo Meiji, esta ficou conhecida como a Guerra Boshin. Após "a Restauração Meiji" triunfar sobre o clã dos Tokugawas, os Meijis procurariam absorver as modernas técnicas de produção capitalista por meio da implementação dos Decasséguis [3], desenvolveriam a maquinofatura, modernizaram o modelo de exército [rompendo com o mercenarismo] e já no final do Século XIX as estruturas agrárias japonesas haviam sido suplantadas e minadas por uma modelo superior de ordenamento da produção com vista à acumulação de capital otimizada e à circulação de mercadorias, à verossimilhança das potências ocidentais que haviam sido seus algozes, passando o Japão a despontar na cena-histórica como um país industrial, moderno e imperialista onde as classes dominantes impunham a exploração sobre as classes dominadas por intermédio do assalariamento, da extração da mais-valia e desfrute do sobretrabalho, rompendo-se então com a lógica decrépita expressada no sistema de corveias e nas relações feudo-vassálicas, típico da servidão asiática e da enfiteuse xogum.
A Via-Japonesa ou Via-asiática de consignação do capitalismo oriental possui muitas similaridades com a via-prussiana ou com o fenômeno do prussianismo - analisado por Lênin em seu "Imperialismo fase Superior do Capitalismo" e sobretudo em "O programa agrário da social-democracia russa na primeira revolução russa" - , ela consistia em um modelo de capitalismo tardio [conformado em 1867], donde parte da nobreza Xogum [4] - do antigo Período Tokugawa - , se transmuda em burguesia imperialista por intermédio dos Zaibatsus [5] (os quais se tornariam muito proeminentes adequandos à nova lógica mercantil, durante o reinado de Mutsuhito Meiji) engendrando um processo de acumulação de capital superior [se comparado ao feudal], o qual permitiu ao Japão a despontar como potência, avançando de forma também imperialista e belicista primeiro sobre o sudeste da China, já em 1849 e depois, em 1894, sobre a Ilha de Formosa e mais adiante, sobre a região rica em minério de ferro denominada como "faixa da Manchúria" em 1904, o que os leva à declarar guerra à Rússia (a qual seria facilmente vencida na guerra Nipo-Russa). Após 1905 o Japão conquista a Coréia e exerce uma dominação imperial sobre parte significativa da Indochina.
"Via prussiana, ou caminho prussiano para o capitalismo, como a denominou Lênin, aponta para um processo particular de constituição do modo de produção capitalista. No dizer de Carlos Nelson Coutinho, trata-se de um itinerário para o progresso social sempre no quadro de uma conciliação com o atraso: "Ao invés das velhas forças e relações sociais serem extirpadas através de amplos movimentos populares de massa, como é característico da 'via-francesa' ou da 'via-russa', a alteração social se faz mediante conciliações entre o novo e o velho, ou seja, tendo-se em conta o plano imediatamente político, mediante um reformismo 'pelo alto' que exclui inteiramente a participação popular". Se a denominação é devida a Lênin, a observação da particularidade do atraso alemão, sabe-se, é algo bem mais antigo. As menções que fizemos da Crítica do Programa de Gotha (1875) a contêm, e basta lembrar da Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843) para constatar a antiguidade e a permanência da postura (...) Sinteticamente, a via prussiana do desenvolvimento capitalista aponta para uma modalidade particular desse processo, que se põe de forma retardada e retardatária, tendo por eixo a conciliação entre o novo emergente e o modo de existência social em fase de perecimento. Inexistindo, portanto, a ruptura superadora que de forma difundida abrange, interessa e modifica todas as demais categorias sociais subalternas. Implica um desenvolvimento mais lento das forças produtivas, expressamente tolhe e refreia a industrialização, que só paulatinamente vai extraindo do seio da conciliação as condições de sua existência e progressão. Nesta transformação "pelo alto" o universo político e social contrasta com os casos clássicos, negando-se de igual modo ao progresso e a razão, gestando, assim, formas híbridas de dominação, onde se "reúnem os pecados de todas as formas atrasadas de Estado" - (CHASIN, 2009)
Tal itinerário afeiçoado ao imperialismo ocidental, permitiu ao Japão avançar as forças produtivas, a tecnologia e a ciência em tempo recorde [em menos de cem anos], a adotar o Kanban [6], e a implementar a produção com o advento do Just in Time [7]. Outrossim, com a remodelagem da nova forma de exército e de esquadra de guerra, os japoneses substituíram os decrépitos remanescentes do feudalismo - calcados na ordem societária onde vicejavam os Samurais, os encouraçados de madeira e os Daimyos [8] -- por uma gendarmaria e força nacional armada profissional, desenvolveram o nacionalismo, o chauvinismo oriental e declaram o xintoísmo como forma de despotismo esclarecido acoplado ao direito-divino do imperador, como forma de legitimar a razão de Estado. O conceito de transformismo[9] de Antônio Gramsci é uma das chaves heurísticas para se entender o capitalismo japonês, sua burguesia de tipo anômalo e a viragem de um Modo de Produção encanecido a outro moderno [O Capitalista]. Quanto a "revolução Meiji", esta não passou de uma revolução passiva [10], ou de uma modernização conservadora: uma transformação feita por cima pelas classes dominantes, catalizada e acelerada pelo contato com o imperialismo ocidental e pelo processo de abertura dos portos pelos EUA, ademais, uma implementação contra as massas e sem apoio e participação destas.
Glossário
[1] - O Tratado de Kanagauwa foi um tratado assinado entre o Comandante Matthew C. Perry representando a marinha estadunidense e os Xoguns do Japão representando o Estado Japonês, no dia 31 de março de 1854. O tratado permitiu aos EUA a abertura dos portos japoneses de Shimoda e Hakodate ao mercado ocidental, garantindo ademais que os marinheiros dos Estados Unidos não seriam retalhados ao desembarcarem, ele também estabeleceu um consulado permanente dos EUA no Japão. Isso acabou definitivamente com a política de isolamento do Japão.
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[2] - O Tratado
de Harris ou Tratado de 'Amizade' e Comércio, foi firmado em 28 de
Julho de 1858, em Shimoda. Este tratado permitiu aos EUA o acesso
comercial ao porto de Edo e a extraterritorialidade japonesa aos
estrangeiros.
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[3] - Japoneses oriundos de famílias abastadas que imigravam para o ocidente a fim de conhecer os segredos da produção de mercadorias. Os Decasséguis ao retornarem à sua pátria, implementavam aquilo que haviam aprendido no ocidente e no modo de produção capitalista japonês procuravam avançar e desenvolver aquilo que haviam estudado e aprendido no ocidente.
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[4] - Xogum é um nobre guerreiro feudal, geralmente um oligarca detentor de status, poderes, terras e propriedades no feudalismo japonês, geralmente está associado a um Daimyo. O Título de Xogum era concedido pela suma deidade: o Imperador.
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[5] - Zaibatsus eram conglomerados artesanais, expresso nas corporações de oficios, manufaturas e guildas orientais, geralmente eram pertencentes às famílias nobres e ricas do Japão que se tornavam burguesas e eram responsáveis por operacionalizar a produção de bens de consumo e a circulação interna de mercadorias, no período de transição do feudalismo ao capitalismo.
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[6] - O Kanban, é, Segundo Ricardo Antunes, a utilização de placas ou senhas de comando para reposição de peças e de estoque. No toyotismo, os estoques são mínimos quando comparados ao fordismo.
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[7] - Segundo o Sociólogo Ricardo Antunes, o Just in Time tem como princípio um o melhor aproveitamento possível do tempo de produção no capitalismo: reordena-se as funções e engendra-se a multifuncionalidade laboral, operacionalizando o trabalhador uma gama de multi-funções durante a jornada de trabalho. O Just In Time também aplica-se à uma forma de produção conforme as exigências da demanda: a administração da produção é que determina tudo deve ser produzido, transportado ou comprado na hora exata, reduzi-se assim os estoques e os custos decorrentes para a produção e circulação de uma determinada mercadoria.
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[8] - Os Daimyos eram grandes famílias que possuiam terra e tradição Samurai, geralmente um Daimyo é uma família poderosa detentora de prestígio e tem a tradição guerreira, o sistema de Daimyos governava a maior parte do Japão Feudal a partir de suas imensas propriedades de terra hereditárias.
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[9] - Em um de seus Cadernos do Cárcere, Gramsci denomina de "transformismo de classe" a passagem, viragem e transmutação dos representantes e elementos de uma classe dominante à representantes e elementos de outra. No Caso Japonês, os Nobres Xoguns prefazem-se burgueses e ao passo que os burgueses transformam-se em nobres.
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[10] -Gramsci cunhou o termo Revolução Passiva para se referir ao processo pelo qual um grupo social chega ao poder e conquista a hegemonia sem romper com o tecido social e com os arranjos de classe, com o metabolismo social e de dominação classe, por meio de uma revolução, mas pelo contrário, as classes dominantes adaptam-se a estes elementos e modifica-os gradualmente de forma passiva e dentro da lógica sistêmica reacionária.
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