Carlyle e a história reacionária dos grandes homens

"Em cada fenômeno, o começo permanece sempre o momento mais notável." - (Thomas Carlyle, A História de Frederico II )
Por Felipe Lustosa, Historiador e Filósofo.
A
concepção historiográfica reacionária advinda com Thomas Carlyle
é aquilo que volta a vicejar nesta cena-histórica derruída a qual
Lukács em seu ''A Destruição da Razão'' chegou a denominar de
"Decadência
Ideológica Burguesa".
Os rumos e destinos da história por certo não podem ser arremedo de
interesses escusos, não podem ser algo previsto por uma
profecia de
nossos
Nostradamus do pós-modernismo,
nem a história é obra de curiosos, de gurus ou de apologetas
do
Capital.
A História é a ciência que estuda de forma sistemática o auto-movimento societário do homem num devir hominizado, é, ademais, o reflexo e a emulação ideática do movimento imanente da matéria humana no cosmos e em sociedade; nestes termos, podemos dizer que a história é o reflexo teórico do movimento de um objeto de pesquisa exógeno ao historiador, mas a um só tempo ineliminável do próprio historiador [que é um homem] ; objeto este o qual está em eterno movimento, que neste caso, é o movimento da sociedade dos homens.
Mas de acordo com a volição e vontade dos teóricos atuais da burguesia os quais se manifestam por intermédio dos meios de propagação da ideologia dominante - os quais estão sob a custódia das classes dominantes que infundem, formulam e inculcam um consenso vil e uma historiografia de classes absolutamente mercantil, frívola e decadente, muito em voga no pós-debâcle do muro de Berlim - , estes não sabem fazer outra coisa que não parodiar os velhos e nauseabundos cadáveres da história naturalizando a história de seu tempo como tragédia e farsa, tal como colocou Marx no 18 Brumário; pois que de uma classe ilustrada a burguesia, já há muito tempo, com suas potencialidades civilizacionais esgotadas e extintas tornou-se uma classe reacionária, detratora do iluminismo, deletéria e profundamente irracionalista a qual, no máximo, só consegue se tornar saudosista de robinsonadas pretéritas. Noutros termos, de quando era heroica, revolucionária, mas sem que se vá até o fim.
A história oficial da burguesia, é [tal como ela] um elemento transformista: ela deixa de ser revolucionária (ainda no século XIX) passando a se tornar parte do compêndio da reação, i.e, tornou-se descompromissada com os interesses do gênero humano, tornando-se portanto, um arremedo ontonegativo e fetichista à subjetivação do gênero humano e só podendo lançar por terra atrofiamento da ominilateralidade, desefetivação e opróbrio; naturalizando as formas refinadas de despojo da força de trabalho as quais as reestruturações da produção - em sua senda insaciável por acumular capital - engendraram.
Está este modelo
de "historiografia
de reality" muito
bem adequado ao espírito burguês em franca ruína, outrossim, ao
seu período de hegemonia explicitado desde a segunda metade do
século XIX trata-se de uma forma de metanarrativa
confortável e adaptada às predestinações
e anseios das classes dominantes e, como não poderia ser diferente, à ordem do Capital. Nestes termos, o complexo da consciência
[já apodrecida] da burguesia se reflete nos demais complexos da vida
humana, noutros termos, refletem o complexo do desfrute.
Ele ademais, sócio-reproduz a base infame da produção
material da imediatidade do homem que está sob o jugo de ferro do capital, reproduz o
itinerário de espoliação e de atrofiamento, o condicionamento à ordem e a exaltação dos ídolos burgueses. A alienação primordial que emana do complexo do
trabalho e da infraestrutura, torna-se alienação religiosa, alienação da natureza, alienação do homem e alienação política: De uma existência material miserável e odiável,
abrolha uma consciência marginal, solipsista, condicionada à
auto-reposição do metabolismo do capital e também deletéria a qual é sorvida a largos goles pelas classes dominadas.
Por parte dos intelectuais orgânicos reacionários tal como o infame Lenadro Narloch, há a retomada dos grandes feitos burgueses passados como atos jocosos e por vezes, "despretenciosos"; como se história se limitasse a isto: um "amontoado de fatos" seguido de uma rememoração falseada e absolutamente mistificada. Se assemelha a aquilo que tentou apregoar a perspectiva vulgar da "Teoria do Grande Homem" de Carlyle, [ainda que Carlyle tenha sido um homem profundamente erudito, ao contrário do saltibanco Narloch].
Esta perspectiva historiográfica advinda com Carlyle só tratou de exaltar os grandes feitos das classes dominantes sob motes heroicos da burguesia ilustrada, revivendo personagens de outrora [do ínterim trágico e das teogonias do mundo clássico] sob as vestes engomadas e as perucas de talco da burguesia europeia, conjurando em suas metanarrativas as velhas Epopeias do mundo clássico, os gêneros literários da narrativa gnômica e os mitos gregos, agora resignificados com uma demão de tinta contemporânea, trajando os uniformes de combate dos 'generais-espada' da burguesia pós-1848 sob os olhares flamejantes e atentos dos grandes industriais e dos homens de negócios modernos; ávidos por se tornarem os protagonistas de alguma narrativa heroica ou a próxima estrela [e bola-da-vez] de uma robinsonada pseudo-historiográfica, numa exortação sem precedentes de cadáveres insepultos e de fantasmas da história magnificamente adaptados à bitola imagética da burguesia, pois se tinha de ter talento para se transformar Danton em Sólon.
Foi
desta forma que personalidades de época estavam agora associadas às
figuras proeminentes do ínterim trágico, figurando grande destaque
perante parte da opinião pública bestializada e animalizada pelo
desfrute do Mais-Valor; algumas personalidades verdadeiramente
abjetas e outras mais ou menos decentes foram associadas aos heróis
da mitologia e aos grandes gênios militares do período
greco-romano. Tal episódio nos relembra o relato de Marx, em seu 18
Brumário, onde este diz:
A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar e nessa linguagem emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a república romana e como o império romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795. De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela. O exame dessas conjurações de mortos da história do mundo revela de pronto uma diferença marcante. Camile Desmoulins, Danton,Robespierre, Saint-Just, Napoleão, os heróis, os partidos e as massas da velha Revolução Francesa, desempenharam a tarefa de sua época, a tarefa de libertar e instaurar a moderna sociedade burguesa, em trajes romanos e com frases romanas. Os primeiros reduziram a pedaços a base feudal e deceparam as cabeças feudais que sobre ela haviam crescido. Napoleão, por seu lado, criou na França as condições sem as quais não seria possível desenvolver a livre concorrência, explorar a propriedade territorial dividida e utilizar as forcas produtivas industriais da nação que tinham sido libertadas; além das fronteiras da França ele varreu por toda parte as instituições feudais, na medida em que isto era necessário para dar à sociedade burguesa da França um ambiente adequado e atual no continente europeu. Uma vez estabelecida a nova formação social, os colossos antediluvianos desapareceram, e com eles a Roma ressurrecta - os Brutus, os Gracos, os Publícolas, os tribunos. os senadores e o próprio César. A sociedade burguesa, com seu sóbrio realismo, havia gerado seus verdadeiros intérpretes e porta-vozes nos Says, Cousins, Royer-Collards, Benjamin Constants e Guizots; seus verdadeiros chefes militares sentavam-se atrás das mesas de trabalho e o cérebro de toucinho de Luís XVIII era a sua cabeça política. Inteiramente absorta na produção de riqueza e na concorrência pacífica, a sociedade burguesa não mais se apercebia de que fantasmas dos tempos de Roma haviam velado seu berço. Mas, por menos heroica que se mostre hoje esta sociedade, foi não obstante necessário heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil e batalhas de povos para torná-la uma realidade. E nas tradições classicamente austeras da república romana, seus gladiadores encontraram os ideais e as formas de arte, as ilusões de que necessitavam para esconderem de si próprios as limitações burguesas do conteúdo de suas lutas e manterem seu entusiasmo no alto nível da grande tragédia histórica.
Foi assim que Ulisses ganhou uma segunda vida em no Almirante Nelson, que o Enéas de Virgílio fora revivido primeiramente em Cromwell e depois, em Robespierre; foi dessa forma que Anibal Barca na batalha de Canas encarnou no Napoleão da Batalha de Wagram [1] e que Marco Aurélio voltou a figurar como 'imperador-filósofo' na pele do odiável déspota esclarecido prussiano, Frederico II.
Tudo metodicamente esquematizado e adequado às especifidades e exigências do ínterim burguês; como se o historiador destes tempos se portasse como um 'alfaiate' e sua pena-razão fosse as ferramentas de alfaiataria que adequam a história a um modelito de homem ideal e então, este alfaiate corta então e costura um belo terno sob arranjo e medida adequados a um cliente burguês.
Ademais, as concepções de cosmos da classe hegemônica estão já explicitadas no modelito de terno histórico por meio da ideologia dominante, esta é o belo lenço de bolso já presente no paletó encomendado pela Burguesia. Esta ideologia era o tipo ideal de concepção de mundo representada no herói burguês, que corporificava ora a 'razão pura e plena' carnada no parlamento, ora 'o absoluto' carnado na razão de Estado, ora o 'contrato social revolucionário' de Rousseau, ora aquele mais lúcido, frio, racional, pragmático e ajuizadamente reacionário, expressado no contrato social de Locke.
O imaginário fecundado pela narrativa dos "grandes homens" [2] do século XIX passava os heróis da Epopeia como "burgueses por convicção, essência, cidadania e ética" e o que era mais trágico: antes mesmo do Capitalismo vicejar enquanto modo de produção e forma otimizada de se acumular capital, afundindo-se tal tipo de perspectiva fatalista e anacronista - e de interpretação inescapável do "derradeiro destino final" da história do século XIX e XX - à condenação da humanidade ao apogeu inevitável do capitalismo europeu o qual traria a burguesia enquanto classe heroica e redentora, os moinhos a vapor, as máquinas de tear como marca indelével da ciência e da técnica burguesas e por conseguinte, do desenvolvimento da civilização que agora, diferentemente do ínterim servil, contava com todos os homens do antigo terceiro-estado (antes servos) irmanados enquanto cidadãos-burgueses, estando o burguês da contemporaneidade livre para ser coroado com uma láurea e lucrar com a espoliação do sobretrabalho em vigor nas moendas do assalariamento, enquanto para as classes dominadas, restava outra liberdade: a liberdade da forca, a liberdade do jugo de ferro, do atmosfera poluída pelo miasma insalubre, o ônus da prostituição, do anonimato, da marginalidade, do lumpesinato e da extração medular de mais-trabalho.
Como o prêmio pela emancipação dos séquitos feudais, o assalariamento lhes presenteava com a exploração fabril regada à suor de betume de cor de piche, os quais pingavam dos dedos dilacerados dos operários ingleses do século XIX, absortos em jornadas de trabalho de até dezessete horas, com a legalidade plácida do trabalho infantil e com a espionagem da gerência científica e todo tipo de depravações e estertores os quais estavam submetidos a classe operária, como apregoa Engels em seu "A situação da Classe trabalhadora Inglesa":
Aos trabalhadores resta o que repugna à classe proprietária. (...) Em geral, as batatas que adquire são de má qualidade, os legumes estão murchos, o queijo envelhecido é mau, o toucinho é rançoso e a carne é ressequida, magra, muitas vezes de animais doentes e até mesmo já em decomposição. (...) A carne vendida aos operários é intragável; porém, uma vez comprada, é consumida. (...) Vende-se manteiga salgada como manteiga fresca, cobrindo-a com uma camada de manteiga fresca ou colocando uma libra de manteiga fresca para ser provada e, depois da prova, vendendo manteiga salgada ou, ainda, retirando o sal pela lavagem e apresentando-a como fresca. Ao açúcar, mistura-se farinha de arroz ou outros gêneros baratos, assim vendidos a preços altos; até mesmo resíduos de sabão são misturados a outras substâncias e vendidos no açúcar. Mistura-se chicória ou outros produtos de baixo preço ao café moído; ao café não moído, dando-se-lhes forma de grão, também se misturam outros artigos. Também é frequente misturar-se ao cacau uma finíssima camada de terra escura que, banhada em gordura de carneiro, deixa-se mesclar facilmente ao cacau verdadeiro. O chá vem misturado com folhas de ameixeira e outros vegetais, ou então folhas de chá já servidas são recuperadas, tostadas em alta temperatura sobre placas de cobre para que retornem a cor e vendidas em seguida. A pimenta é adulterada com cascas de nozes moídas etc. (...) E eu poderia citar mais uma dúzia delas - entre outras, a prática infame de misturar gesso ou argila à farinha.
Os pilaretes de 'gesso estapafúrdio' ocultavam os pardieiros de desvalidos dos quais Carlyle [3] evitou de relatar em seus livros; as operas camuflavam os sons de engrenagem e os ruídos tenebrosos de dor dos guetos de Paris às pocilgas de Manchester, os capitólios da tripartição burocrática dos três poderes que garantiam o escrutínio do 'voto conscienciosos' à parte dos excluídos, tentava imitar como réplicas mal-emuladas [da Caverna das formas] os bastiões de outrora de uma Grécia mítica [nunca antes existente] e da falida gen. Romana em seus tempos de triunfo e glória. Havia, contudo, um belo pró: toda essa carnificina, som de metal e trapaceamento do gênero humano, toda a exploração e cafetinagem ocorria sob os sons de piano de Liszt e em meio às trovoadas de Wagner, os quais tocavam dos bordeis e lupanares às tavernas recheadas de lúmpens.
Notas:
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[1]
A
Batalha de Wagram foi uma escaramuça travada entre os exércitos de
Napoleão
e
do Arqui-duque
Carlos da Austria,
nas localidades de Wagram,
no contexto das Guerras
Napoleônicas da
Quinta
Coligação.
O resultado final deste combate foi a derrota austríaca e a
capitulação destes perante a França.
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[2] - A "Teoria dos Grandes Homens" foi uma vertente historiográfica consignada pelo historiador e erudito escocês Thomas Carlyle, consistia na ideia de que a história poderia ser interpretada através da vida dos heróis e de suas epopéias. Foi um marco na historiografia romântica. Mas entra em desuso quando a Escola dos Anales se torna a moda intelectual, voltando a figurar de forma deletéria nos escritos positivistas do século XXI e no dos Pós-modernos.
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[3] - Thomas Carlyle foi um historiador protestante, biógrafo e ensaista das primeiras décadas do século XIX, Sua idéia de história consistia na proposição de que a história pode ser interpretada por intermédio da vida dos "heróis e dos grandes homens" esta concepção serviu-lhe de base empiriocrítica para erigir diversas obras como: Cartas e discursos de Oliver Cromwell, de 1845; Vida de John Sterling, de 1851; Vida de Frederico II da Prússia e Etc. Esta modalidade de historiografia vulgar e condicionada às classes dominantes foi suplantada pela Escola dos Annales e pela Nova História, mas ainda encontra prosélitos dentre os historiadores conservadores.
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Bibliografia:
CARLYLE,
T.; History
of Frederic II of Prussia
, Londres, 1858.
ENGELS, F.; A Situação da Classe Trabalhadora
Inglesa, São Paulo, Editorial Boitempo, 2008.
LUKÁCS,
G.; El
assalto a la razon:
la trayectoria del
irracionalismo
desde Schelling hasta Hitler, Barcelona/México: Editorial Grijalbo,
1968.
MARX, K.; Contribuição à Crítica da Economia Política,
SãoPaulo, Editorial Expressão Popular, 2008.
MARX,
K.; O 18 Brumário de Luís Bonaparte, São Paulo, Editorial
Centauro, 2006.