Autores Independentes

Breves notas sobre as guerras servis, luta de classes e a Revolta de Spartacus

28/09/2020

"Se minha própria atividade não me pertence, é uma atividade estranha a mim, que me é forçada, a quem pertence ela, então? A outro ser que não eu! Quem é esse ser? Os Deuses? Evidentemente, nas primeiras épocas da história humana a produção principal, como por exemplo a construção de templos etc., no Egito, Roma, Babilônia, Índia e México, aparece tanto a serviço dos deuses, como também o produto pertence a eles. Sozinhos no mundo celeste, porém, os deuses, nunca foram os senhores do trabalho profano. Tampouco a natureza. E que contradição seria também se o homem, o senhor do mundo profano, quanto mais subjugasse a natureza pelo seu trabalho, quanto mais os prodígios dos deuses se tornassem obsoletos perante os prodígios da indústria, tivesse de renunciar à alegria na produção e à fruição do produto por amor a esses poderes sobre-humanos. O Ser estranho ao qual pertence o trabalho e o produto do trabalho humano, para o qual o trabalho humano está a serviço, direcionado e é voltado à fruição (...), só pode ser o homem mesmo. Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, um poder estranho está diante dele, então isto só é possível pelo fato de [o produto do trabalho] pertencer a outro homem fora o trabalhador. Se sua atividade lhe é martírio, então ela tem de ser fruição para outro ser que não ele, é alegria de viver para um outro homem que não ele. Não são os deuses, não é a natureza, mas apenas o homem mesmo [aquele] que pode se apoderar deste poder estranho sobre outro homem." - (Marx, Manuscritos Econômico-filosóficos, p.86)

 No ínterim do paganismo Romano existiam mais devotos de Marte (a guerra) que de Pênia (a miséria e a vida resignada). Mas por que isto se dava, se existiam mais servos de dívida e escravos do que patrícios, cônsules e tribunos em Roma? Isto é, se existiam mais miseráveis do que soldados e oficiais pertencentes às classes dominantes?

Acontece que deusa dos miseráveis (Pênia) junta ao daimon da revelação e da compaixão só eram cultuados pelos mendigos, pelos verdadeiramente azarados e escravos por dívida durante a situação inicial de pobreza; i.e, para estes saberem se continuariam miseráveis para o resto de suas vidas -e caso fosse uma assertiva-, para esta deusa dos patifes, lúmpens e desgraçados tornar a miséria menos sofrível; Pênia era uma deusa que condicionava o homem espoliado ao escravagismo e à resignação, a mansidão se tornava "motivo de honra" e servir (e ser desfrutado) ganhava contornos de techné, ademais, Pênia amenizava as feridas por imolação e tornava o chicote mais leve e brando-, já Marte, este era um deus intempestivo, indomável tal como o fogo da destruição, era sempre cultuado pelos escravos pois ao deus da guerra, a destruição não importando o lado, lhe era aprazível e somente o que importava a este deus, era o tributo de sangue e não, o butim.

Os escravos mais talentosos, sobretudo, com as armas, estes morriam não nas masmorras: resignados e flagelados, mas nas arenas como gladiadores e heróis. Conquistavam certa fama e até poderiam conquistar sua liberdade e alforria, se tornando eles próprios lanistas e donos de um ludus, mas para tal, precisavam fazer preces incessantes ao deus padroeiro de Roma para que se saíssem bem nas arenas, para que sobrevivessem aos ferimentos, mutilações e fraturas, conseguidos nos combates e para que auferissem as benesses, a ascensão, a projeção almejada e o prestígios por terem se dedicado integralmente ao ludus e por terem se demonstrado hábeis nos coliseus.

Mas o escravo romano rogava a Marte também por outro motivo: rogava à guerra porque desde Heráclito, o fogo é um πάντα ῥεῖ (um panta-rhêi) e pólemos, a medida que destrói e desterra, também pavimenta o caminho bravio para o ressurgimento do novo e para a civitas...Desde a filosofia grega, das guerras gregas, do oikos grego e do escravismo antigo -dos quais os latinos, etruscos e romanos eram os maiores tributários- a guerra fora exortada como forma de "civilizar" os povos limítrofes através da agonística e também, como forma de se rebelar por parte dos dominados, contra os povos dominadores e imperialistas, ao exemplo de Roma.

"Pólemos revela os deuses numa mão e os humanos noutra, traz escravos numa mão e liberta-os dos grilhões com outra." (Heráclito, Fragmentos sobre a guerra)


Neste itinerário, o escravo tinha ódio de classes de seu apresador e diferentemente dos Patrícios -que eram imperialistas e cesaristas, por sua própria natureza de classes-, o escravo almejava outra forma de guerra; a guerra de vingança e a guerra classes contra as classes dominantes e seus exploradores, os quais saqueavam seu sobretrabalho à base do Azorrague e da romanização dos costumes bárbaros; esta era a única real opção para sua emancipação do jugo escravagista e do desfrute de mais-trabalho lançados por terra nas minas, pedreiras de calcário, nos domus residenciais, nos prostíbulos e nas escolas de gladiadores. 

Estes escravos almejavam uma sublevação contra as classes dominantes, i.e, contra os Imperadores e contra o Senado perdulário e conspurco; em suma, almejavam reduzir a cinzas a gen. Romana que os arrancara de sua terra matra, trucidara suas aldeias distantes e escravizara seu ser por meio das campanhas resolutas nas guerras de expansão das fronteiras império.

 Estes escravos amotinados teriam três chances de vingança e de emancipação naquilo que ficou conhecido como "As Guerras Servis": A primeira fora capitaneada por Euno e Cleon (em 135 a.C), a segunda por Trifão e Atenião (em 104 a.C) e a terceira, foi capitaneada por Spartacus e Crixus (em 73 a.C).

Com Spartacus as guerras Servis tomaram novos contornos, segundo Plutarco, era Spartacus:"um escravo intelectualizado, não-barbárico, deveras perspicaz e helenizado", no que nos dá a entender os comentários de Apiano; ele chegou a ser versado na filosofia estoica da época e diferente de seus antecessores; era alfabetizado: lia, escrevia, tinha um bom latim, formulava estratégias de combate e possuía características de um líder político-militar, sabe-se que estava habituado a longos sermões e falações antes das batalhas e que foi muito eficiente em levantar bandos de gladiadores amotinados contra Lentulo Batiato -somente munidos com feneiras, paus e redes-; ainda que Floro, adotando a defesa dos costumes, da ordem escravista e da gen. Romana, quase que de forma "apologética", insista em demonizar Spartacus, o retratando como: "mercenário da Trácia, admitido em nosso exército, soldado desertor, bandido promovido a gladiador por sua força"

Sabe-se que desempenhou tal monta (enquanto líder político-militar) na Trácia de onde era originário. De acordo com Plutarco, em seu "A Vida de Crasso", com Spartacus, as Guerras Servis deixaram de ser meras revoltas campais e escaramuças rebeldes, passando, de fato, a significarem uma ameaça tanto ao Modo de Produção romano (i.e, o Modo de Produção Escravista), quanto à República em si.

Com Spartacus estas revoltas ganharam contornos de fato classistas e anti-sistêmicas: sob sua liderança hordas se tornariam exércitos guerrilheiros bem modulados e adaptados a diversos ambientes e climas, com divisões próprias, generais próprios, estandartes e forças alternadas -ou armas de exército- (visto que continham artilharia arqueira e de cerco, cavalaria leve e pesada, Infantaria rápida, guardeira e de colisão)."

 Com Spartacus os saques e as razias desordenados das primeiras Guerras Servis deram lugar a uma forma de acumulação primitiva de provisões e de excedentes, os quais por meio da pilhagem de espólios, lhes possibilitavam vitórias épicas sobre o Triunvirato, tal como a batalha travada às margens do Monte Vesúvio, onde os amotinados de Spartacus superaram ( no ano 73 a.C) as centúrias romanas bem treinadas e alimentas compostas por mais de 3.000 homens de Caio Glaber, recorrendo a uma estratégia com cordas improvisadas e a uma série de emboscadas como forma de contra-atacar Glaber, enquanto os romanos dormiam em seus acampamentos de campo, driblando desta forma o cerco imposto pelo Pretor romano - que tinha por meta fazer os escravos sucumbirem de fome.

Foi na terceira Guerra Servil que os "corpos livres" se tornaram exércitos regulares adquirindo certo grau de organização política e de consciência; Spartacus fez a solda entre camponeses, gladiadores, prostitutas e trabalhadores da construção civil -os quais erguiam ruas, capitéis, arcos e aquedutos- sob uma única causa, dinamitar a escravidão e derrocar a República Romana por meio de uma revolução. A Revolta de Spartacus, perdeu o caráter messiânico, místico e espontaneísta - notórios na primeira guerra servil de Euno, a qual arregimentara um exército modesto e significativo de cerca de 20.000 escravos em armas, que sob a liderança de Cleon, chegaram a tomar (em 134 a.C), tanto a Catânia quanto o vilarejo de Tauromênio, afirmando Euno ser um "profeta armado" surrupiando o poder político e adotando as vestes, o nome fictício e a imagem fetichista de Antíoco II.

As revoltas escravas não ocorriam por obra dos deuses nem por providência dos profestas, mas por obra da luta de classes. Os deuses nunca foram os senhores reais da produção, são a expressão metafísica e invertida da vida dos homens profanos e das formas de objetivação do Capital, mas também refletem as contradições sociometabólicas entre o Capital e o Trabalho e as relações imanentes que a luta de classes imprime; de modo que compreendendo as relações de produção e de trabalho, têm-se uma compreensão translúcida de teu deus. A Terceira guerra Servil de Spartacus levantou contra a águia de prata e contra o escravagismo romano 120 mil homens desterrados e submetidos ao trabalho compulsório nas pedreiras, nos domus residenciais e nas arenas, açoitados por lanistas, para servirem à população bestializada e à parte da plebe, como meio de ludus, durante a política de Pão e Circo.  
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Referências Bibliográficas

APIANO. Guerras Civis 
FLORO. Epitome   
LÍVIO. Periochae Ab Urbe Condita
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos, Ed. Boitempo, 2010 
PLUTARCO. Vidas Paralelas; A Vida de Crasso
WOODS, Alan. Spartacus: A real representative of the proletariat of ancient times; CMI - Internet Archives, London, 20, March, 2009



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