Autores Independentes

Breves notas sobre a primazia ôntica do trabalho enquanto categoria fundante de hominização

12/07/2020
    "Fome é fome, mas a fome que se sacia com carne cozida, comida com garfo e faca, é uma fome diversa da fome que devora carne crua com mão, unha e dente. Por essa razão, não é somente o objeto do consumo que é produzido pela produção, mas também o modo do consumo, [que] não apenas objetiva, mas também subjetiva. A produção cria, portanto, os consumidores. A produção não apenas fornece à necessidade um material, mas também uma necessidade [externa] ao material. O próprio consumo, quando sai de sua rudeza e imediaticidade originais (e a permanência nessa fase seria ela própria o resultado de uma produção aprisionada na rudeza natural), é mediado, enquanto impulso, pelo objeto."

                                                                     (Marx, Grundrisse)

    Por Felipe Lustosa, Historiador e Filósofo

    O trabalho é aquilo que se revela como um veículo ontoprático para a criação de valores de uso, tal como para auto-criação do homem enquanto ser objetivante -de si e de sua própria sociabilidade-, isto implica em dizer que é uma monta que possibilita ao ser gregário suprassumir a condição estritamente biológica (plasmada sob a forma de ser orgânico), atingindo, por consequência, a etapa ou faceta social.

    Pode-se dizer que é o trabalho um produto do desenvolvimento natural das forças fisiológicas e anatômicas (que são o primeiro motor e impulso de todo o ser vivo), resolutas no agir cognoscitível teleológicamente coordenado: em sua fisiologia e metabolismo próprios, tal como, nas atividades basilares do ser primevo, este executa movimentos envolvidos na sua auto-reposição e desta reposição diuturna e imanente, [deste primado ôntico necessário à vida e envolvido na reposição da imediatidade do ser] erguem-se faculdades e complexos novos não mais reclusos somente à instância instintual do ser orgânico.

    Estes complexos de novo tipo e morfologia, antes não existentes no ser basilar, se dão justapostos ao movimento material de seus membros, mente e organismo no desempenhar primário de suas potências, i.e, na auto-reposição de si, mas a partir do momento que o agir natural (labor) salta ao trabalho conscienciosamente planejado, o ser gregário & orgânico galga a hominização de si e de sua generidade específica, consignando uma nova modalidade de ser e inaugurando novos complexos sociais concernentes à vida humanizada, os quais vão se aprimorando no devir humano com o avanço das forças próprias do homem, com a divisão social do trabalho, com os excedentes de produção permitidos pelo trabalho e com a sociedade sedentarizada e assentada, sob a forma de civilização (engendrando novos avanços com relação aos meios de produção da vida social).

    A medida que a instintualidade vai sendo suplantada pelo agir puramente télico -o qual se arrola no devir do ser orgânico em ser social- o salto ontológico que permite o homem ir além de sua mera explicitação organoléptica e instintual, se consubstancia civilizacionalmente, afundindo-se no desenvolvimento ominilateral da humanidade, de suas potências e de si (enquanto indivíduo subjetivado), tal como da espécie humana, como autorrealização social.

    O trabalho também implica, obviamente, em trazer consigo, um afastamento das barreiras naturais das quais era o ser antecessor um refém sem que o soubesse; o trabalho na interação metabólica com a natureza, não permite ao homem obliterá-las por completo, mas domá-las parcialmente, nisto consiste o seu afastamento, tornando por meio desta faina, possível que a vida humanizada (na poleis) se erga e desenvolva diretamente da vida natural-gregária, a qual é negada e suprassumida: os entraves naturais são afastados pela práxis objetivante da matéria, a qual as transmuda em ferramentas variegadas, mas neste câmbio metabólico ontopositivo, não são eliminados os primados ôntico do ser orgânico sobre o social: O Homem é um animal que respira, pulsa, executa uma gama de fisiologias, se reproduz e perece no cosmos, como todos os outros seres organolépticos.

    A diferença é que este reduz a distância para a obtenção de provisões, de forma humanizada, sofisticada e abundante por meio do trabalho, com a emersão do mundo dos homens no cosmos. A medida que ele ingressa num novo ser auto-fundado pelo trabalho, i.e por meio de seu auto-movimento imanente e teleológico no devir resoluto em sua práxis laboral oriunda de uma prévia ideação consubstanciada em valor de uso, a medida que elenca pôres-teleológicos, o homem se auto-cria enquanto um ser social e da etapa humanizada, novos complexos específicos se erguem à sua imagem e semelhança.  

    Bibliografia:

    Engels, A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado 
    Lukács, Prolegômenos Para uma Ontologia do Ser Social
    Marx, Grundrisse
    Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos
    Thomas Carlyle, Sartor Resartus

    Paideia Comunista
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