Breves notas materialistas para uma Antropologia da Religião
"Se minha própria atividade a mim não pertence, se é uma atividade estranha, exógena e forçada, a quem ela pertence? (...) De fato, nos primeiros tempos, a grande produção, como por exemplo a construção de templos, muralhas, diques, canais e etc., no Egito, Índia, México, bem como no culto dos deuses, o produto pertence também aos deuses. Mas os deuses nunca foram os únicos donos do trabalho. Nem também a natureza. E que contradição não seria, se o homem, quanto mais se submetesse à natureza pelo trabalho e quanto mais os milagres dos deuses se tornassem supérfluos pelas maravilhas da indústria, tanto mais renunciasse por amor a estes poderes, à alegria na produção e à fruição do produto! O ser estranho, a quem pertence o trabalho e o produto do trabalho, a cujo serviço está o trabalho e a cuja fruição se destina o produto do trabalho, só pode ser o próprio homem." - (Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos, P. 24-30)

Este [mundo], o empyreus, é exatamente a antítese do mundo imanente e mutatis-mutandis: Neste plano fixo e imutável (no paraíso, no céu, no Olimpo), deposita-se em deus, o rei dos avejões, as características inapreensíveis; i.e, impossíveis de serem atingidas pelo homem (e de certa forma, aquelas que também lhe foram expropriadas durante o desfrute do trabalho). No deus todo poderoso deposita-se a fé de um fiel sempre frágil, acocorado fora do cosmos e em aflição e profunda agonia, Feuerbach dirá que pelo deus reconhece-se o tipo de homem que nele crê, sendo Marx aquele que dirá que quanto mais poderoso é o deus de uma forma societária [dotado de miniscências fantásticas e inatingíveis por um homem], mais fraco, pauperizado, miserabilizado espiritualmente é aquele que o cultua, portanto, quanto mais o homem põe [de si] em seu deus, menos de humano lhe sobra[2].
Logo deus é o reflexo antropocêntrico perfeito de um homem coxo e impuro [e alienado de si, de suas objetivações e de sua totalidade genérica] [3], sendo a antítese do homem profano, pois, se o homem é imanente seu deus será transcendente, se o homem não sabe que sabe (ou sabe que não sabe, tal como Sócrates presumiu), logo o seu deus de tudo saberá; se o homem é impotente (tal como um atleta com limitações mortais) sobretudo diante dos desastres naturais, das competições de lançamento de disco e da guerra das póleis, logo o seu deus a tudo pode: ele é o terraformador do mundo, é um campeão olímpico, um hoplita como Ares, um arqueiro como Apolo, uma espadachim guardeira como Atena (é imponente e agonístico, ou o próprio elemento como os Titãs de Hesíodo, pode ser mais belo que a beleza como Afrodite, mais forte que a força como muitos dos filhos de Zeus e heróis o foram a exemplo de Hércules ou como Atlas, na tragédia, diante de sua punição eterna) eles são, como não poderia ser diferente, onipotentes diante da criatura que os adulam -a qual é sempre impotente, indefesa...Porém, sua criadora.
"A alienação não se revela apenas no fato de que os meus meios de vida pertencem a outro e são externos a mim, de que os meus desejos são a posse inatingível de outro, mas de que tudo é algo diferente de si mesmo, de que a minha autoatividade é qualquer outra coisa menos minha e que, por fim - e é também o caso do capitalista - um poder inumano [que] opera sobre tudo." - (Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos)
Se o homem é múltiplo, seu deus é uno dentre os diversos deuses, se é o homem ser perecível -que apodrece ao morrer- se é um ser mortal, seu deus imperece e carece de fim, é imortal como o Eros do Banquete, que mesmo ao morrer renasce sempre como o Amor, se o homem é partejado e uma criatura impura, logo seu deus não necessita de parto e é puro (apesar do Cristo Carpinteiro, que veio do ventre de Maria em sua forma terrena/mortal). Se deus é criador do cosmos, da vida e da sociabilidade dos homens como Jeová e Etc, o homem é o causador do fim, do apocalipse, o merecedor da palmatória moral -pelo dilúvio.
A Religião é o reflexo estranhado e fantástico da imediatidade do homem que se perdeu, é subproduto do câmbio metabólico alienado do homem com a natureza e com seu radical genérico, deste câmbio, o homem que pela primeira vez criou e contemplou o fogo objetivado, i.e, surgido de suas mãos em carne viva e da fricção de paus, foi também aquele que pela primeira vez o cultuou enquanto Manipanso e deidade anímica, do fogo animado ao deus antropomorfo e titã, o campeão da humanidade que assalta Héstia e rouba o Raio olímpico cedendo-o ao homem e o retirando da escuridão (como é o caso de Prometeu), foram questões de eras e de saltos ontológicos, onde cada demiurgo incorporava em suas características físicas, subjetivas e estéticas, traços e elementos indeléveis de cada modo de produção.
"A mudança necessária na história é, portanto, esta confissão aberta, de que a consciência de Deus nada mais é que a consciência do gênero humano, de que o homem pode e deve se elevar acima das limitações da sua própria individualidade ou personalidade, mas não acima das leis, das qualidades essenciais do seu gênero, que o homem não pode pensar, pressentir, imaginar, sentir, crer, querer, amar e adorar como essência absoluta, divina, a não ser a essência humana." - (Feuerbach, A Essência do Cristianismo)
As relações de produção da vida imediata e da cotidianeidade dos homens explicam o teu Deus e não, vice-versa. Uma Talassocracia comercial terá como seu Campeão e padroeiro o Poseidon dos Mares, já uma diarquia imperialista, tal como Esparta, terá como Campeão seu Ares vingador, sedento por sangue o qual caminha dentre os mortos de um campo de guerras com seus filhos loiros e ministros do medo e da destruição: Phobos e Deimos.
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NOTAS:
[1] -"O homem transporta primeiramente a sua essência para fora de si, antes de encontrá-la dentro de si. A própria essência é para ele objeto, primeiramente, como uma outra essência." (FEUERBACH,1988, p. 56.)
[2] - "Quanto mais o homem atribui a Deus [e mais poderoso este se torna], tanto menos guarda para si mesmo." (MARX, 1975, p. 159-60)
[3] - "A religião não faz o homem, mas, ao contrário, o homem faz a religião: este é o fundamento da crítica irreligiosa. A religião é a autoconsciência e o auto-sentimento do homem que ainda não se encontrou ou que já se perdeu. Mas o homem não é um ser abstrato, isolado do mundo. O homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade, engendram a religião, criam uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica popular, sua dignidade espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua razão geral de consolo e de justificação. É a realização fantástica da essência humana por que a essência humana carece de realidade concreta. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo que tem na religião seu aroma espiritual. A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo." (MARX, 2005, p.85)
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Referências Bibliográficas:
Manuscritos Econômico-Filosófico
A Questão Judáica
Critica da filosofia do Direito de Hegel
A Essência do Cristianismo