Tales e o início da Filosofia - A Suprassunção do Mito pelo Logos

"A poesia considera uma árvore a certa distância a fim de aprimorar seus encantos e fortalecer seu efeito enquanto esta permanece ali, resplandecente em plena floração com milhares e milhares de flores e permite que ela passe pela força mágica dessa contemplação direta. Mas a filosofia se aproxima da árvore, rompe uma ou no máximo um par de flores, já que essas flores já são suficientes para o seu propósito, a filosofia se livra de algumas delas, as considera com total precisão, as leva com muita calma para casa, seca os botões sob o sol da razão e os preserva em um livro com descrição precisa e minuciosa. A poesia até nos faz um diamante da gota do orvalho que brilha na árvore em cores bonitas, mas a filosofia, para distinguir a essência da ilusão, cutuca a gota de água com o dedo indicador da razão, e com uma limpeza e apuração desta, põe fim à fraude". - (Feuerbach, Abelardo e Heloísa e outros contos de juventude)
Por Felipe Lustosa, Historiador e filósofo.
Tales de Mileto é considerado o primeiro filósofo e, embora conheçamos muito pouco sobre ele e não subsista nenhum fragmento seu, foi desde a Antiguidade visto como o iniciador da visão de mundo e do estilo de pensamento que passamos a entender como filosofia. Duas características são fundamentais nesse sentido; em primeiro lugar, seu modo de explicar a realidade natural a partir dela mesma, sem nenhuma referência ao sobrenatural ou ao misterioso, formulando a doutrina da água como elemento primordial, princípio explicativo de todo o processo natural; e, em segundo lugar, o caráter crítico de sua doutrina, admitindo e talvez mesmo estimulando que seus discípulos desenvolvessem outros pontos de vista e adotassem outros princípios explicativos. (MARCONDES, 2008, pp -28)
As vigorosas mãos desse gigante trabalhavam sem descanso, e os seus pés eram infatigáveis; sobre os ombros, erguiam-se cem cabeças de um medonho dragão, e de cada uma, se projetava uma língua negra; dos olhos das monstruosas cabeças, jorrava uma chama brilhante; espantosas de ver, proferiam mil sons inexplicáveis e, por vezes, tão agudos que os próprios deuses não conseguiam ouvi-los; ora o poderoso mugido de um touro selvagem, ora o rugido de um leão feroz ; muitas vezes - ó prodígio! - o ladrar de um cão, ou os clamores penetrantes de que ressoavam as altas montanhas. Tifão é uma besta horripilante, nascida para acabar com Zeus e com o Olimpo. Filho da vingativa Gaia e do sinistro Tártaro, um deus primordial que vive enclausurado nas profundezas. Foi responsável pela fuga em massa dos deuses olimpianos, porque é capaz de incutir grande pavor. Venceu a primeira luta contra Zeus, mas foi derrotado na segunda. (HESÍODO, A Teogonia, pp- 45)
O poeta narra, como para ilustrar o discurso proferido sobre a Justiça, uma disputa judicial com seu irmão Perses pela herança paterna, onde se desenha o cenário de um julgamento arcaico: a ágora enquanto espaço de disputa de discursos, e a decisão soberana do rei-juiz (basileús), que após ouvir ambas as partes litigantes profere a sentença-justiça (díkē). Hesíodo, no entanto, se considera lesado pelo seu irmão, que através de juízes comedores-de presentes (dōrophágos) ganhara a disputa. Partindo desta situação, o poeta faz um intrincado e complexo discurso sobre a Justiça, que comporta fábulas, exemplos e admoestações não somente a Perses, como também para os reis-juízes em geral. (CORRÊA, 2009)
Esta era a substância terraformadora e primeira do cosmos e dos demais seres nele contidos, os quais ganhariam corporatura qualitativa e quantitativa em um eterno rearranjo mutatis-mutandis, advinham deste elemento primordial. A água para Tales fora racionalizada e o fenício, segundo Danilo Marcondes[2], ainda que de uma forma muito rudimentar e incipiente, acaba por elaborar uma concepção de filosofia do cosmos calcada na empiria e na ontognoseologia, municiada, por sua vez, de uma forma originária de episteme em suas formulações acerca da Arché[3].
A maior parte dos primeiros filósofos considerava como os únicos princípios de todas as coisas os que são da natureza da matéria. Aquilo de que todos os seres são constituídos, e de que primeiro são gerados e em que por fim se dissolvem, enquanto a substância subsiste mudando-se apenas as afecções, tal é, para eles, o elemento (stokheion), tal é o princípio dos seres; e por isso julgam que nada se gera nem se destrói, como se tal natureza subsistisse sempre... Pois deve haver uma natureza qualquer, ou mais do que uma, donde as outras coisas se engendram, mas continuando ela a mesma. Quanto ao número e à natureza destes princípios, nem todos dizem o mesmo. Tales, o fundador de tal filosofia, diz ser água [o princípio] (é por este motivo também que ele declarou que a terra está sobre água), levado sem dúvida a esta concepção por ver que o alimento de todas as coisas é úmido, e que o próprio quente dele procede e dele vive (ora, aquilo de que as coisas vêm é, para todos, o seu princípio). Por tal observar adotou esta concepção, e pelo fato de as sementes de todas as coisas terem a natureza úmida; e a água é o princípio da natureza para as coisas úmidas. Alguns há que pensam que também os mais antigos, bem anteriores à nossa geração, e os primeiros a tratar dos deuses, teriam a respeito da natureza formado a mesma concepção. Pois consideram Oceano e Tétis os pais da geração e o juramento dos deuses a água, chamada pelos poetas de Estige; pois o mais venerável é o mais antigo; ora, o juramento é o mais venerável. (ARISTÓTELES, Metafísica, I, 3. 983 b 6, DK 11, A 12)
E afirmam alguns que ela (a alma) está misturada com o todo. É por isso que, talvez, também Tales pensou que todas as coisas estão cheias de deuses. Cf. Platão Leis, X, 899 B) Parece também que Tales, pelo que se conta, supôs que a alma é algo que se move, se é que disse que a pedra (ímã) tem alma, porque move o ferro.(ARISTÓTELES, Da Alma, 5, 422 a 7,DK 11, A 22)
Tales com sua filosofia do cosmos tornara-se o primeiro a fazer teoria da ciência [episteme], sobretudo, ao inaugurar uma forma de relato ancorado nas transformações da physis. Ele consignaria a filosofia da Arché edificando os alicerces da escola milésia e influenciando a toda uma geração de filósofos [e discípulos], como Anaximandro. Em seus escritos estão presentes, ainda que de forma embrionária, o Salto Ontológico[8] qualitativo de um ser inorgânico à formas de seres orgânicos, outrossim, sua concepção filosófica denota uma forma rudimentar de "suprassunção" do mithós (μυθος) pelo logos (λόγος), explicitando-se, em sua teoria sobre a Arché (ἀρχή), a gênese e a transformação dos entes e do cosmos em seres distintos.
Entretanto, apesar das analogias e das reminiscências, não há realmente continuidade entre o mito e a filosofia. O filósofo grego não se contenta em repetir em termos de physis o que o poeta primeiramente e depois o teólogo haviam expressado em termos de mito e em termos de "logos divino". À mudança de registro e perspectiva filosófica, à utilização de um vocabulário profano, correspondem uma nova atitude imanente de espírito e a todo um clima intelectual diferente: Com os milésios da safra de Tales, pela primeira vez, a origem e a ordem do ser no mundo tomam a forma de um problema profano, explicitamente colocado de forma concreta, o qual se deve dar uma resposta sem mistérios ao nível da inteligência cognoscente humana, suscetível de ser exposta e debatida publicamente na Ágora, diante do conjunto dos concidadãos, como as outras questões da vida corrente na pólis. Assim se afirma uma função de conhecimento, livre de toda preocupação de ordem ritual e metafísica. Os 'físicos', deliberadamente, ignoram o mundo da religião. Sua pesquisa nada mais tem a ver com esses processos místicos do culto aos heróis e deuses, os quais o mito, apesar de sua relativa autonomia, permanecia sempre mais ou menos ligado. - (VERNANT, 1986, pp -76)
E Zeus pariu a terceira outra raça de homens mortais, a raça brônzea, ele criou-a e esta em nada se assemelhava à raça anterior argêntea; a raça brônzea era também a raça do freixo com temíveis lanças, era terrivelmente forte e bélica e lhe importavam de Ares obras gementes, guerra e violências; nenhum trigo eles comiam e de bronze tinham resistente o coração; que era ao Deus padroeiro inacessível e impenetrável: grande era a sua força, seus braços eram invencíveis e dos ombros nasciam sobre as robustas espáduas. Deles eram brônzeas as armas que empunhavam e brônzeas também eram as suas casas, com bronze trabalhavam e dele erguiam suas torres: de negro ferro em suas cidades, nada havia. E por suas próprias mãos sucumbiram, descendo ao úmido palácio de Hades; sendo então relegados ao anonimato; a morte, por assombrosa que fosse, pegou-os de forma inesperada tingindo-os de negro, no tártaro. Deixaram então, de ser como o sol, como a luz brilhante da manhã. (HESÍODO, O Trabalho e os Dias, pp- 87)
Tal embate ilustra na ontologia do ser natural (portanto, na gênese da physis e no reordenamento dos elementos nela adstritos) a história da ontognoseologia, tal como ilustra a suprassunção do mito pelo logos também naquilo que concerne ao maturamento do legado ontológico, que, quando cronologicamente analisado, fornece as pistas para a consignação de uma Arché (ἀρχή) historicizada dos elementos e seres, explicados por concepções científicas, para o surgimento do ser no cosmos. estas explicações passam a ter seu centro de gravitação e substrato cosmológico calcado na relação imanente do homem com a natureza, durante a redução de seus entraves naturais por intermédio do Trabalho.
Tal teorização acerca do cosmos, munida de maiores elementos, viria a vicejar de forma mais madura do que no ínterim de Tales, por volta do ano 470 a.C, com o advento do Milagre Grego, expressado na pena e na concepção filosófica denominada de "Atomismo" (naquilo que viria a ficar conhecido como tradição materialista clássica), em voga e consignada com Leucipo e Demócrito, como analisa Vitrúviu.
Sobre os fenômenos da natureza, Tales de Mileto, Anaxágoras de Clazômena, Pitágoras de Samos, Xenófanes de Colofão, Leucipo, Demócrito de Abdera descobriram as regras geométricas que segundo os quais são governadas pela natureza das coisas e pelo modo no qual vêm a existir. Tendo prosseguido as descobertas deles, Eudoxo, Euctemon, Calipo, Meton, Filipe, Hiparco, Arato e outros descobriram o nascimento e ocaso dos astros e das matérias, a composição dos corpos e o significado das tempestades, a partir da astronomia, com o método dos calendários, deixaram estes, mãos do explicado aos pósteros. Descrevi, de acordo com Demócrito, as figuras que no mundo dos astros são modeladas e formadas pela natureza e pelas moléculas, e cheguei a conclusão, que como num edifício, na natureza as coisas se dão por partes diminutas dela mesma que a formam em grandes obras. (VITRÚVIU, De Architectura Libri Decem , pp - 72)
Bibliografia:
MAZZEO. A.C., O Voo de Minerva: A construção da Política, do igualitarismo e da Democracia no Ocidente, 1° Edição, Boitempo
ARISTÒTELIS, Metafísica
ARISTÓTELES, Da Alma
MARCONDES.D., Iniciação à história da Filosofia - Dos Pré Socráticos a Wittgeinstein, 13° Edição, Zahar
CORRÊA. D., O Conceito de Justiça em "Os Trabalhos e os Dias" de Hesíodo, in:https://www.pucrs.br/edipucrs/XSalaoIC/Ciencias_Humanas/Hist%C3%B3ria/70287-DENISRENANCORREA.pdf
D.APOLÔNIO, Sobre a ciência natural
HEGEL.F.G.W., Preleções sobre a História da Filosofia
VERNANT.J.P., O Universo, os Deuses e os Homens
VERNANT.J.P., As Origens do Pensamento Grego
LUKÁCS. G. , Prologômenos: Para uma ontologia do Ser Social
LUKÁCS. G., Para uma Ontologia do Ser Social I
LUKÁCS. G., Para uma Ontologia do Ser Social II
HESÍODO, O Trabalho e os Dias
HOMERO, A Ilíada
HOMERO, A Odisseia
MARX. K., A Diferença entre as Filosofias da Natureza de Demócrito e Epicuro
PLATÃO, A República (Timeu e Crítias)
VITRÚVIU, Da Arquitetura