A subjetivação por meio da arte e a mercadoria artística - Notas sobre o fetichismo da Arte
Por Wesley Sousa (estudante de Filosofia) e Felipe Lustosa (Historiador e filósofo)
Uma pessoa que não folheia uma boa obra filosófica, histórica ou literária; não se questiona de onde veio e qual o sentido das coisas; não aprecia uma boa música e nem uma peça artística; não se propõe a exercitar seu intelecto e nem seu corpo; não tenta produzir, por pouco que seja, um poema, um texto literário ou filosófico; se o sujeito não conversa com singeleza com as demais pessoas que gosta, este ser está cada vez mais estranhado e sua imagem humana encontra-se afogada.
As
potencialidades peculiares do ser social [omnilatrais], enquanto tal, dissipam-se no
ar como feitiçaria e poeira. Contanto, a raiz imanente deste desfrute subjaz na
fábrica, no seu trabalho dilapidado nas moendas de esforço, suor e sonhos do
capitalismo: a quimera fugaz e esfacelada reflete-se em sua "alma"
comercializada. É de Marx, em seu Salário, Preço e Lucro, a constatação acerca da animalização do ser Social em meio ao seu processo laborativo nas moendas do assalariamento:
"O tempo é o campo de desenvolvimento humano. O homem que não dispõe de nenhum tempo livre, cuja vida, afora as interrupções puramente físicas do sono, das refeições, etc., está toda ela absorvida pelo seu trabalho (...) é menos que uma besta de carga. É uma simples máquina, fisicamente destroçada e espiritualmente animalizada, para produzir riqueza alheia."
Pensemos, aqui, no consumidor de lixo virtual, no adulador de lixo artístico, no retardo mental hollywoodiano oriundo da industria cinematográfica, na astrologia fajuta, lixo metafísico neopentecostal e nos livros de autoajuda assinados por mercenários e por sofistas metidos a intelectuais. Nossos gostos, em cultura, também são condicionados pelas relações materiais.
Rousseau era um homem de letras & crítico de seu tempo, foi um pensador magnífico que criticou e denunciou as penúrias da vida de servo e, em consequência, teve problemas chegando a ser perseguido como inimigo público na França, o que lhe rendeu um exílio na Inglaterra. No seu livreto intitulado "Discurso sobre as Artes e a Ciência" de (1749), ele assinalou sobre o caráter despótico da aristocracia acerca dos bens e das artes:
"As artes, a mecânica e a riqueza quando nas mãos de duques, baronetes, comerciantes e do padre, só encorajam nossos vícios enquanto sociedade criam as desigualdades e fomentam a propriedade, afastam-nos da perfeição e da verdadeira essência humana que subjaz adormecida em nosso peito, que consiste na vida simples, fraternal, igualitária e modesta".
A cultura -- musical e artística -- é a expressão do modo de reprodução material [da vida] dos seres humanos. A musicalidade torpe, idiotizada, inerente à subjetividade humana despedaçada é o simbolismo da mercantilização da arte em franca degradação, ela está resoluta e também subsumida à forma de se objetivar o capital e de valorar D' [D°-M-D'] e isto se dá através da exploração do homem e de uma forma muito peculiar de violência, expressada na subsunção do homem ao sobretrabalho.
Para que o proletário distancie-se cada vez mais de sua imagem humana e da vida humano-genérica enquanto homem recomposto, existe a "arte" degradante da burguesia, isto é, a "arte" medíocre para a venda e lucratividade, uma arte vil que envilece o homem e atrofia as potências humanas o fazendo decair à um estágio férico, vil, solipsista e barbárico (e isso não significa negar que do mar de mediocridade da burguesia deletéria, não se saia alguma coisa razoável como um raio em céu azul).
Consequentemente, a arte como expressão do real e do pensamento em certos nichos sociais, torna o ser carente de virtudes (embora nem se pense nisso) na produção que ele chama de "cultura". A forma-mercadoria na qual se trata a naturalização da violência sexual; a comercialização corpórea, não liberta e não livra dos grilhões do mundo do trabalho assalariado; não dá voz ao oprimido, mas muito pelo contrário oprime ainda mais a criatura aflita e a defronta enquanto uma quimera. Eis que jorra desta monta estranhada, desta casa de cera, a subserviência do homem ao Capital e ademais, sua conivência com os complexos humanos os quais decaíram ao opróbrio e em um mar de alienações.
Parafraseando certo filosofo alemão: não é a arte -- seja ela qual for -- que faz a realização da realidade, mas a realidade que se encontra submetida na musicalidade. A nossa sociabilidade encontra-se em notório fosso, naquilo que alcunhou de"decadência ideológica burguesa" [conforme desvela Lukács], por vaidades estéreis e condicionamentos alienantes pela ideologia burguesa, esta condição torna-se castrante e mistificadora em sua generalidade, se tornando a cada momento mais fascistizada, mesquinha, egoísta, mistificada, anti-ilustrada e violenta.
Acerca da chamada "indústria cultural", vale lembrar de um trecho do livro "A indústria cultural: o iluminismo como mistificação de massas." de Max Horkheimer e Theodor Adorno, em que dizem:
"Filme e rádio se autodefinem como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores-gerais tiram qualquer dúvida sobre a necessidade social de seus produtos. Os interessados adoram explicar a indústria cultural em termos tecnológicos. A participação de milhões em tal indústria imporia métodos de reprodução que, por seu turno, fazem com que inevitavelmente, em numerosos locais, necessidades iguais sejam satisfeitas com produtos estandardizados."
O que eles estão a dizer? A constituição do público de fato favorece o sistema da indústria cultural porque este público faz parte do sistema. Neste sentido, eles prosseguem dizendo que:
"a tendência social objetiva da época se encarna nas intenções subjetivas dos supremos dirigentes, são estes os que originalmente integram os setores mais potentes da indústria. Os monopólios culturais são, em confronto com eles, débeis e dependentes."
A indústria cultural não sublima o homem à um novo patamar, mas muito pelo contrário, em seu estágio burguês castra-o de inventividade, amolda-o, degenera-o, reprime-o e sufoca sua essência. Romantiza o amor de tal forma, que guia o ser social à uma acefalia social resoluta numa Crise Afetiva brutal; assim como existe a exaltação reacionária da tristeza, do niilismo e a própria superficialidade daquilo que se tem como trágico. O divertimento que a "cultura de massa" finge promover, torna-se a resignação do homem que procura se esquecer de sua rotina de Prometeu da Fábrica.
A depravação da cultura mercantil que plasma a tudo e todos como valor de troca e objeto de barganha, joga-nos uns contra os outros. Os "rolezinhos" e a "ostentação" advêm do fetichismo da mercadoria, da ideologia enquanto falsa consciência e não do "poder de consumir por se deter glamour", possuindo-se por poucos instantes aquilo que não se precisa. O "ostentar" e o con.sumir a algo "top" para ser algum "descolado medíocre" ou encaixar-se "na galera" e modas do momento, é expressão destes tempos de decaimento e reflexo do espírito burguês em putrefação
O esfacelamento da subjetividade, a animalização dos sentidos também plasmada na imagem do playboy e da mocinha bancados pelos pais, os quais usam peças e acessórios espúrios que perdem simplesmente sua função social primária [enquanto valor de uso] a qual é apenas uma identificação ingênua de si mesmo e de seu status-quó, o revela como homem ao avesso, o retrata [à mente sã] de forma invertida e expropriado da própria essência e gênero humano. Diz Marx, em seus Manuscritos Econômico-Filosóficos que tais laços societários deletérios e relações alienadas advém das relações de produção estranhadas, pois segundo o alemão, é neste complexo nevrálgico [o do trabalho] que "a exploração do trabalho aliena o homem de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital, assim também o aliena da espécie."
Tornamo-nos apenas "consumidores", clientelas do que nos é dado como arte e cultura no mundo do capital, somos peças de joguetes estranhos do Capital ou sujeitos da história? Nesta etapa, somos passados como "clientes", mas também nos tornaram mercadorias vivas [estamos reificados]. A cultura tornou-se um apêndice da maquinaria e da vida industrializada das grandes metrópoles, ela nos convida e infunde a condição em que a "vida desumana pode ser tolerada". O sujeito deve utilizar o seu desgosto geral como impulso para abandonar a vida de apêndice do maquinário e consignar a vida verdadeiramente humana, pari passu que constitui o a vida comunal, o trabalho livre e associado e alavanca sua generidade, dos quais está estranhado e tolhido.
A
vida no capitalismo tardio [em franca putrefação das subjetividades] coloca o sujeito como um ser acocorado fora do cosmos, alienado de suas virtudes e dos
complexos da vida humana, não só pela estandardização das
técnicas de produção, mas sobretudo pelo atrofiamento de sua
omnilateralidade. Ele só é tolerado à medida que sua identidade [sem reservas com o universal] permanece fora de contestação,
apaziguando seu impeto e mutilando seus desejos, os quais expressam-se pelas pulsões mais genuínas e na fisiologia. Portanto, se
pensarmos que a expressão artística é algo "só para
ouvir/sentir/realizar" melhor então sabermos, também, que a
linguagem artística, ou arte expressada, é a consciência do homem
imanente em ação na sua característica mais marcante, perseguindo o objeto de sua paixão, exógeno e transformando-o.
A sofisticação das artes, das letras e ciências, para que gere uma catarse no seio das turbas alienadas e sua potencial subjetivação, requer que estas edifiquem em seu ser massa-crítica e potencial cognoscível das coisas existentes, outrossim, que edifiquem um potencial de apreciação superior, de auto-reconhecimento, de pertencimento e um vínculo ontoprático com sua objetivação.
Para tal monta, a sofisticação não deve ser vulgarizada e nem rebaixada ao nível bárbaro do homem que hodiernamente existe, mas é o bárbaro que deve ser elevado à uma condição ontologicamente superior; uma condição verdadeiramente humana e inteligível a qual exigem as artes, as letras, a técnica e a ciência e todas as fainas superiores explicitadas no espírito humano.
Somente desta forma estes produtos do gênio e trabalho humanos serão sorvidos, entificados, apreciados e devidamente, tal como reassimilados no convívio social e processo de subjetivação de-si enquanto generidade humana e totalidade de uma forma de ser social recomposta de sua essência; isto é: o homem deve edificar-se enquanto humano restituído da "sucata orgânica de-si" que apodrenta neste ínterim e a qual o metabolismo capitalista erigiu. Deve ele fazer-se homem novamente daquilo que é deletério e salta de seu ser envilecido e espoliado pelo metabolismo social do Capital e por sua dinâmica de desfrute e de saques, para que então, dele jorre um novo ser social. Ademais, jorrem as vicissitudes da elevação qualitativa de seu espírito para aquela então requisitada catarse artística supracitada; isto é, para que a devida apreciação e fruição do real existente e da vida humana, se tornem possíveis.
Noutros termos; deve o bárbaro ser reumanizado pela monta ontopositiva do trabalho, por um trabalho que gere fruição (e não estertor), que se efetive livre de quimeras e de sua forma fantasmagórica resoluta no assalariamento. Trabalho este que é a conditio sine qua non de sua hominização e que portanto rompe com a forma pretérita; deve ele fazer-se homem pelo trabalho livre e associado! Para que só então frua humanamente da condição sofisticada na qual encontram-se as artes, as letras e a ciência e todo progresso humano, do qual o homem se vê espoliado, diuturnamente desterrado e tolhido pelo Capital.
Referências bibliográficas:
HORKHEIMER,
Max & ADORNO, Theodor. A
indústria cultural: o iluminismo como mistificação de massas.
Pp. 169 a 214. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa. São
Paulo: Paz e Terra, 2002. 364p.
Marx, Karl. Critica da filosofia do Direito de Hegel (1843)
MARX, Karl. Manuscritos
Econômico-Filosóficos (1844)
Marx, Karl. Salário, Preço e Lucro (1865)
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as Artes e a Ciência (1749)